Como Lidar Com a Raiva
Ah, esse monstrinho...
De tempos em tempos, costuma circular na internet um texto que sempre me chama a atenção. Embora as diferentes versões apresentes variações, em suma trata de um homem que todas as manhãs passa por outro e o cumprimenta com um caloroso “bom dia”, acompanhado de amplo sorriso. A gentileza, porém, é correspondida com alguma palavra ríspida ou, às vezes, apenas solenemente ignorada pelo outro. A situação se repete por anos, até que um espectador intrigado pergunta ao primeiro se não percebe a forma como é tratado. Tranquilo, o homem responde que sim, mas não pode permitir que outra pessoa determine a forma como ele vai se sentir e, consequentemente, como irá agir. E explica: dizer bom dia, assim como ser paciente, é uma opção pessoal e intransferível. Se o outro não retribui é problema dele, não seu e, se lhe faz bem desejar sinceramente que o homem tenha um dia bom, não há razão para mudar a atitude simplesmente porque o outro opta por não agir da mesma forma.
Há algumas semanas, no consultório, um paciente falou sobre esse texto e comentou: “Acho bonita a atitude do protagonista”. Lembrando-me agora de sua frase, sou fisgada pela palavra “protagonista”. Talvez o que me intrigue no conto é o fato de o personagem continuar a ser dono de sua história, feitos os monges budistas, que foram acompanhados pelo neurocientista Richard Davidson. Usando técnicas de neuroimagem para registrar as ondas cerebrais, o pesquisador percebeu que os voluntários, que acumulavam de 10 mil a 50 mil horas de meditação, tinham o lobo frontal (área fundamental para o controle das emoções) bastante desenvolvido e reagiam sem grande alteração neurológica diante de cenas normalmente perturbadoras.
Reconhecem o incômodo, a dor, a injustiça. E seus cérebros revelam grande empatia e compaixão pelo sofrimento alheio, mas a emoção não os tira do sério.
Talvez o homem que insistia em cumprimentar o outro também praticasse meditação ou tivesse desenvolvido alguma técnica que o impedisse de agir de forma reativa, tirando-o do centro de sua própria vida, ainda que de forma momentânea. Tanto ele quanto os monges parecem ter descoberto formas de interromper o movimento interno que nos faz viver a frustração como uma ameaça mortífera, que precisa ser aplacada pela raiva. Como insistem os pesquisadores, não se trata de sufocar o monstrinho, negando a emoção, tampouco de deixa-lo livre para fazer estragos difíceis de serem concertados. Trata-se de reconhecer a irritação, dar lugar e sentido a ela e, paulatinamente, construir a possibilidade de decidir de que maneira queremos (e podemos) expressá-la.
Em 1913, Sigmund Freud afirma em seu Totem e tabu, uma espécie de conto antropológico: “No princípio foi a ação”. No texto, o criador da psicanálise constrói uma hipótese sobre o surgimento da cultura, da lei e da religião pressupondo uma cena inicial marcada pela raiva: frustrada, a horda primitiva revolta-se e assassina o pai primordial, detentor absoluto de todos os direitos. Freud destaca, porém, que o que cria as bases da civilização não é a violência em si, mas sim o movimento que intercepta a continuidade de sua expressão, o estabelecimento simbólico do totem, o acordo entre os irmãos. Trata-se da interdição do ato por meio da elaboração, ou talvez da possibilidade de escolha.... Fico aqui imaginando se o interlocutor curioso tivesse perguntado ao homem da história se não tinha raiva. Pode ser que ele respondesse que havia aprendido a escolher as batalhas que queria lutar (em vez de deixar essa decisão para seu monstrinho).